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    O operariado paulistano era composto majoritariamente por imigrantes. Em outras funções da cidade, encontravam-se os trabalhadores nacionais, muito deles mestiços e negros, empregados nos comércios e atividades informais.

    Esses segmentos foram considerados como “classes perigosas” pelo poder público e pelos profissionais da área médica, que viam os trabalhadores de forma preconceituosa e racista. Os trabalhadores desempregados ou com baixos salários, em sua busca por um local para viver, acabaram gerando zonas insalubres de habitações e uma expansão descontrolada da malha urbana. Isso acabou resultando, segundo Costa (1979, p. 28), numa intervenção estatal no desenvolvimento do setor urbanístico, que contou com a colaboração de higienistas, preocupados com as consequências que poderiam advir.  

    Com as descrições médicas, os ambientes das habitações foram redefinidos a componentes mais técnicos: sistema de esgoto e drenagem, o modo de limpar as ruas e coleta de lixo, a distribuição da água e as falhas arquitetônicas. Ou seja, tarefas que consideramos básicas, atualmente, como certos atos de limpeza (lavar as mãos, limpar e varrer a casa) tornaram-se medidas governamentais nessa época (BEGUIN, 1991, p. 40).

    Essas providências tomadas foram rígidas e violentas e aceleraram o processo de segregação urbana em decorrência da legislação urbanística, de planejamentos de saneamento básico e de estratégia de monitoramento. Com a intenção de eliminar os cortiços degradantes, a intervenção estatal voltou-se para a produção de espaço urbano e de habitações salubres, mas caros, o que levou a subdivisão da cidade em espaços formais, que atendiam a todas as premissas das autoridades, e outro informal, insalubre, porém barato, pois desassistido da infraestrutura básica sanitária e demais equipamentos de bem-estar urbano. 

    Uma nova lógica de salubridade surge, com particularidades inspiradas pelas antigas grandes obras romanas e pelo progresso da tecnologia (FERREIRA, 2017, p. 57). Trata -se de uma evolução no aspecto técnico, econômico e político que, inicialmente, se deu pelas companhias privadas na busca pelo monopólio e, na segunda etapa, pelo Estado que se tornava o gestor dos serviços presentes na cidade. O Estado é o único que possui capacidade de reverter uma tendência patológica em questões morais, acentuando seu controle na vida doméstica (BEGUIN, 1991, p. 41). 
 

    A residência começa a ser avaliada por um conjunto de normas técnicas, tanto na questão construtiva, quanto em sua divisão interior, que controlariam seu funcionamento. A moradia, portanto, passa a ter limites técnicos, econômicos e políticos. Segundo Correia (2004, p.28), o governo atuou de forma mais autoritária, por meio da redefinição do seu programa, de suas plantas arquitetônicas, introdução de novos materiais e técnicas construtivas, além da difusão de utensílios e mobiliários inéditos e sua ligação com as redes públicas de abastecimento de água e esgoto, visto que a ideia era compatibilizar a questão de salubridade com a privacidade dos moradores.

    Outra atuação governamental da época foi a redefinição do espaço urbano e seu desenho com a instalação da infraestrutura básica e sanitária, com clara delimitação de bairros ricos e de classe média, dotados de serviços básicos, e aqueles pobres, muitas vezes sem esses benefícios, rompendo-se aspectos da privacidade domiciliar, dada a obrigatoriedade de instalação e pagamento de taxas pelos serviços de infraestrutura que passam a ser oferecidos pelo poder público.    Outra atuação governamental da época foi a redefinição do espaço urbano e seu desenho com a instalação da infraestrutura básica e sanitária, com clara delimitação de bairros ricos e de classe média, dotados de serviços básicos, e aqueles pobres, muitas vezes sem esses benefícios, rompendo-se aspectos da privacidade domiciliar, dada a obrigatoriedade de instalação e pagamento de taxas pelos serviços de infraestrutura que passam a ser oferecidos pelo poder público.

    Os bairros nobres, como Higienópolis, Avenida Paulista e Jardins, no início do século XX, ocupavam a parte alta de São Paulo. A classe baixa - operários e “marginais” - localizavam-se próximos às várzeas, sujeitas a inundações periódicas, às margens das ferrovias e às meias encostas, constituindo os bairros fabris (Brás, Mooca, Belém e Bom Retiro), onde havia uma mescla de armazéns, fábricas e moradias populares, em terras desvalorizadas pelo mercado imobiliário. Segundo Morangueira (2006, p. 14), por volta de 1890, todas as regiões populares, exceto Bexiga e Liberdade, eram várzeas pantanosas. 

    Dentre as mudanças impostas pelo programa destacam-se as alterações das áreas internas, dos recuos laterais e jardins para possíveis aberturas de janelas nos cômodos, visando seu arejamento e a separação da casa com a rua. Também se pensou na organização da casa de forma a reduzir o tempo gasto dentro dela. Respeitando o tratado de Vitruvio, a construção deveria buscar beleza, consistência e utilidade, de maneira a implantar edifícios em lugares adequados e distribuí-los corretamente. 

    As habitações anteriores ao século XIX ainda seguiam padrões coloniais, o que, para Costa (1979, p. 110-111), do ponto de vista higiênico, a rusticidade do material e das técnicas de construção eram arcaicos, pois a precariedade e a inexistência de condições de ventilação e iluminação consistiam em características marcantes e, denominadas por ele de “pré-higiênicas”.

    Essas últimas regiões, em sua maioria, não usufruíam da necessária infraestrutura de esgoto e instalações sanitárias, gerando epidemias constantes, as quais prejudicavam o comércio e a indústria. Essa visão orientou a intervenção estatal em São Paulo até a década de 1940, sendo a população trabalhadora o principal foco das vigilâncias. Nesse meio tempo, a figura do médico tornou-se uma “autoridade sanitária”, que passa a aconselhar os governantes quanto às práticas higiênicas.

    As novas intervenções urbanas se fundamentaram em pesquisas referentes ao possível avanço das doenças e como isso afetaria o então processo de crescimento industrial em São Paulo, já que sua malha urbana oferecia proximidade entre o mercado de bens, trabalhadores e intercâmbio entre empresas. A grande quantidade de trabalhadores em bairros precários chamou a atenção de empresários e políticos em relação a diminuição da esperança de vida dessa população, a interrupção do crescimento das capacidades produtivas e a falta de desenvolvimento moral. Com isso, teorias sanitaristas passam a ser aplicadas para solucionar o problema como um todo e não mais sujeitando os trabalhadores a seus instintos, e tentando debelar as revoltas e convulsão social que ameaçavam a propriedade e as instituições (CORREIA, 1998, p. 29).

    Foi quando, em São Paulo, se encampam ideias sobre o meio ser o responsável pela precariedade do estado moral do “pobre”, o que poderia ser mudado  através  de seu controle e reordenamento, seguindo os preceitos de saúde física, moral e segurança. Na Europa, entre o fim do século XIX e o início do XX, as teorias de transmissão e origens de doenças, e, em consequência, da formação do caráter das pessoas, eram relacionadas ao meio ambiente, como forma de manipulação, controlar os ambientes precários através de dados técnicos, possibilitando a redistribuição dos poderes no ambiente dos empreendimentos da cidade.

    De modo geral, a planta e o programa tendem a se alterar pela criação de áreas internas, recuos laterais e jardins, que permitiam a abertura de janelas nos diversos cômodos e que separem a casa da rua e dos vizinhos. No Brasil, na segunda metade do século XIX, foram aos poucos se difundindo os recuos laterais – que, ampliando-se, foram se convertendo em jardins – e o recuo frontal. Outra alteração importante da planta ocorrida no Brasil – embora limitada às casas de classe média e alta – diz respeito à introdução de porões. (CORREIA, 2004, p. 28). 

    Logo, os alojamentos dos trabalhadores precisavam atender a três vertentes: a salubridade, para questões de saúde e qualidade de vida; o cômodo, para a organização da residência de forma a reduzir o tempo gasto nela; e a questão econômica.  Para Beguin (1991, p. 49-52) este movimento foi denominado de processo de “domesticação”. 

    Com isso, a prioridade do Estado foi alterar a legislação, por meio da criação do Código de Posturas do Município de São Paulo de 1886, que estabelecia inúmeras especificações para as habitações operárias. 

    O Código de Posturas determinava para os cortiços e pequenos conjuntos de moradias operárias, conjuntamente, uma área mínima de cinco metros quadrados para cada cômodo; um poço com água e um pequeno tanque de lavagem para cada seis habitações, uma latrina com água para cada duas habitações sendo proibida a presença dessa tipologia (cortiço), no perímetro de comércio. Não tolerava casas subdivididas servidas para muitos indivíduos, da mesma forma, que deveriam ser construídas, no máximo, em grupos de quatro a seis, de acordo com as leis formuladas a partir de 1890, analisadas no trecho a seguir: 

    Diversos autores, como Correia (2004, p. 31) e Beguin (1991, p. 50) afirmam que no interior das edificações passa a ser recomendada a separação de funções, sexos, idades, pais e filhos, por meio de barreiras arquitetônicas em cômodos distintos, pois a questão da intimidade e do conforto ordenado seria a melhor forma de se morar.

    Ainda no raciocínio de Correia (2004, p. 28) todas essas reflexões foram atribuídas nas solicitações das obras, pois se verifica que, sobretudo as plantas das moradias unifamiliares, passaram a ser divididas em cômodos constituídos por atividades específicas, como: a “sala” para o recebimento de visitas, os “dormitórios” para o repouso, a “varanda” ou “sala de jantar” para as atividades cotidianas, a “cozinha” para o preparo dos alimentos, e o banheiro (externo ou interno) com latrina, para as necessidades fisiológicas e higiene pessoal. Nas palavras de Correia: 

    As cidades europeias sofreram com condições extremas de insalubridade, gerando problemas nas indústrias com seus empregadores e familiares, uma vez que havia diversas indenizações, falta de produtividade e muitos acidentes durante as jornadas de trabalhos. Isso acontecia, pois seus trabalhadores estavam suscetíveis a doenças que, de acordo com Rosen (1994, p. 54-55), eram causadas devido à deficiência de suprimento de água, à inexistência de escoamento dos dejetos, ruas sem calçamento e os hábitos de vida rural. A exiguidade e precariedade de espaço, tanto no ambiente urbano, quanto nas próprias moradias, ocasionaram a disseminação de doenças e dizimaram inúmeros cidadãos.

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    Em 1893, A lei 38 estabeleceu que toda e qualquer nova edificação dependesse das plantas aprovadas e a lei 375, de 1898, determinava que cortiços infectos e insalubres não seriam permitidos e deveriam ser demolidos ou reconstruídos conforme o padrão municipal. Esta intervenção é {sic} reforçada, entre outras, pela lei 493, de 1900, que declaradas não serem permitidas as habitações coletivas em forma de cortiços, nem casas que para tal afim não forem construídas, nem os cortiços que não estiverem de acordo com o padrão. (BONDUKI, 1998, p. 38).

Moradias precárias na Inglaterra, em 1872. Fonte: <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.189/6701 2004>

    Às condições gerais da habitação seguiram medidas do governo relacionadas a questões teóricas e técnicas referentes à circulação. Os limites passaram a ser metodológicos e sociopolíticos ao invés de naturais, no qual o poder público poderia instituir ordens em diversos setores, órgãos sanitários e, até mesmo, na própria habitação e na vida doméstica de seus cidadãos. Segundo a afirmação de Beguin (1991, p. 45), o “poder necessário para impor aos proprietários e aos construtores novas normas de saneamento” através de fiscalizações dos edifícios construídos e análise para novas obras na cidade. (FERREIRA, 2017, p. 57).

    Em 1893 surgiram também os modelos de moradia proposto pela Comissão de Exame e Inspeção dos Cortiços, em que a planta “typo” buscou novas medidas mínimas dentro de uma habitação para a produção rentista. Esse tipo de planta foi a mais próxima utilizada nas vilas operárias (BONDUKI, 1998, p. 59). 

    Outro problema gerado foi o desconforto social, que desagregava famílias, aumentava a imoralidade nas comunidades e desenvolvia hábitos e tendências sociais ruins. Para restaurar o equilíbrio, foram resgatadas medidas sanitaristas originadas na Idade Média: as autoridades médicas viam a necessidade de uma desinfecção domiciliar com intuito de eliminar doenças. Também afirmavam que havia uma “ideologia de habitar”, se apegando a isto para exercer uma intervenção política, se apoderando da organização das práticas domésticas e as conduzindo como melhor lhes convinha (FERREIRA, 2017, p. 64). 

    Outra medida criada foi a polícia médica. Originada na Alemanha, em meados do século XVIII, segundo Foucault (1989, p. 83-84), foi uma estrutura administrativa usada para controlar as atividades médicas e acumular informações sobre a população e os seus tratamentos. 

    Em São Paulo, essa política foi exercida pela “diretoria de higiene”, que tinha como função controlar os trabalhadores e defender as instituições. Os funcionários médicos seriam os delegados de higiene, que juntamente aos fiscais eram responsáveis pela providência sanitária. Estes desfrutaram de poderes repreensivos para que se cumprisse o Código Sanitário criado em 1894 (FERREIRA, 2017, p. 178).  

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